sábado, 28 de julho de 2007

Ela Vem!


Por mais que tentamos evitá-la, ela sempre vem...

Vem cambaleando na própria palavra, enigmática, compreensível somente a si. Tem o costume de aproximar-se de nós passo a passo, lentamente, igual quando caminhamos em fila única na direção do altar, na hora da comunhão. Seja em noites frias ou quentes, ela sempre se mostra presente. Em sua face, um ar incógnito vagueia. Às vezes se pinta de beata, em outras se traja de ladra, embora a nudez seja a melhor de suas vestes. Pode ser que esteja embriagada, dopada por um sentimento qualquer. Ou então, absolutamente sã, desfrutando de esplêndida lucidez. Fechar os olhos não adianta, visto que a enxergamos dentro de nós. Tentar enganá-la é algo impossível, uma vez que recusa toda e qualquer espécie de subornação de origem psicológica. Seu humor, constantemente mutável, muitas das vezes nos ilude. E quanto a isso, nada podemos fazer. Já que diante do seu tribunal, passamos da condição de homens anistiados para, criminosos condenados à guilhotina, sem ajuda de anestésicos, em frações de segundos.

Muitos tombaram diante do seu olhar, que nem mesmo Medusa ousara desafiar. Assim como, inúmeras pessoas já choraram rios de lágrimas amargas, ao mesmo tempo em que tantas outras foguetearam alegremente. Dona do vento. Senhora da noite. Usurpadora de sonhos prazerosos e pesadelos nefastos. Que nos convida a um gole de vinho tinto, enquanto guarda consigo um pequeno frasco de veneno letal, prestes a ser derramado em nossos lábios trêmulos.

Por isso hoje, quando forem se deitar, convençam as paredes dos quartos a serem testemunhas dos seus julgamentos. E se for preciso, peçam por socorro ao par de botas batidas escondidos debaixo das suas camas. Com certeza não lhes negarão ajuda.

Mas só não esqueçam, que logo ao amanhecer, se ainda estiverem vivos, deverão me agradecer por ter-lhes alertados. Pois, eu bem que avisei!

terça-feira, 24 de julho de 2007

Abjuração


Aqui fico imóvel, estático. Sujeito-me a tornar-se uma espécie viva de abajur resplandecente. Qual timidamente expande um acanhado feixe de luz, que invade impiedosamente os cantos mais sombrios da minha lúgubre alcova, onde permaneço enclausurado por mim mesmo.

Sozinho eu me viro. Peregrino solitariamente na vastidão árida do deserto formado em minha mente estranha. Divido o pouco espaço restante com as canetas que nada escrevem. Com as borrachas que teimam em apagar. Com as cobertas que me negam calor. E com os famintos pernilongos que me sugam até os ossos.

Porém permaneço imóvel. Feito um abajur a espera do próximo black-out.

segunda-feira, 23 de julho de 2007

Desfragmentação


Ah, como é fabuloso saber que em mãos tenho minha própria existência, ou desistência, se assim preferir. Saber que um simples gesto mortal basta, para dar fim ao tragicômico filme da vida, não editado, onde nunca somos protagonistas. Quero aniquilar-me nesse instante. Quero jogar-me da sacada do meu apartamento, só para ver meu corpo se espatifar na calçada suja de lamentos, por onde transitastes todos os dias em busca de socorro.
Dentro de alguns instantes já não existirei mais. Poderá em fim ficar só, sufocada em seu minúsculo aquário de plantas artificiais que lhe roubam o oxigênio. De certo não sentirá minha falta. Ninguém sentirá. E isso não me preocupa se não alivia. Não deixarei sinal. Nem rastros de minha passagem pelo mundo. Desfragmentarei no ar como um incenso, prestes a ser inalado por alguém sem bom senso.
Que essa minha morte seja novidade, para os olhos daqueles que não enxergam a própria vida, e o poder que não exercem sobre ela. Que seja então consumado um fato único. Uma incógnita. Um desaparecimento total. Até mesmo na mente daqueles que me odeiam.

Deixa-me agora desaparecer!

domingo, 22 de julho de 2007

No Quicar das Pedras

São em fins de tarde como esse, de um Domingo chuvoso e monótono, que me ocorre vastas lembranças do tempo de criança. Como das vezes, em que sozinho rumava na direção do oculto lago paradisíaco no sítio de meus avôs, para que ali, sozinho e em silêncio, pudesse arremessar pequenas pedras no imenso espelho de água que se deitava em minha frente. Lembranças essas mágicas e poderosas, capazes de me transportar num simples fechar de olhos para um estado de espírito sublime e grandioso, onde os azedumes das pessoas são contidos pela minha aura pura de criança, tornando-me assim, inabalável, mesmo que por pouquíssimos instantes.

Entre Sacadas e Guias


Há tempos via-me acordado durante a madrugada. Nas noites longas de inverno, enquanto esperava pelo sono, elaborava planos mirabolantes em minha mente arquitetônica, embora soubesse que nunca os colocariam em prática. Às vezes acendia um cigarro, e da sacada do meu apartamento, observava suas cinzas caírem e se perderem no ar, revelando assim minhas angustias.
Foi através, dessas idas e vindas noturnas até ao lado de fora, que pude perceber a fotossíntese que tomava conta de todos naquele instante, que de alguma forma me envolviam. Morcegos com suas manobras radicais pareciam dispostos a ajudar, pena que não conseguia entendê-los. Cantadas de pneus dos carros que arrancavam no semáforo, pareciam gritos de desesperos, daqueles que em noites frias, costumam buscar por calor em camas alheias. O gemido diário e habitual de um casal, que todas as noites transavam na sacada do andar acima, fazia-me ter a certeza que entre gritos e choros de desespero, ainda existiam gozos no bairro.
Em noites mais amenas, resolvia descer daquele pedestal colossal de ferro e concreto, que há mais de 40 anos, sustentava famílias e vagantes solitários. Ia até a rua e sentava na guia, passando a observar sozinho tudo àquilo que me envolvia. Folhas secas que caiam no asfalto. Galhos que ficavam vazios a espera da próxima estação. Cânticos proferidos por bêbados, tentando fugir da realidade que os assombravam. Reparava em tudo, analisando os mínimos detalhes. Até que o sono vinha e me fazia retornar ao conforto da minha cama cheia de ilusões.Ficava ali, cada vez mais encolhido, na espera inconsciente de um novo dia. E que ele, da mesma forma que viesse me abordar, pudesse devolver-me mais uma noite de sono. Aonde eu viria fechar os olhos e novamente dormir. Mas a certeza que amanhã não seria um novo dia, era o suficiente para minar as minhas esperanças e compreender que esse não era o meu lugar.